“Gil”
“Mesmo me esforçando, não é sempre que consigo acompanhar os passos da dona Filó. Ela é maior que eu...
Apesar de ser baixinha em comparação com os outros adultos. Odeio ter que vir na feira com ela.
Ela me acorda com as galinhas no maior frio, mal me deixa mastigar o pedaço de pão dormido que me dá a contragosto e me arrasta pra cá.
Não odeio este lugar... gosto das pessoas. Menos daquele menino filho do peixeiro que me obriga a mostrar a língua pra ele de tanto que ele me provoca.
Toda vez que a dona Filó me faz carregar um enorme peixe fedido daqueles que o pai dele vende, ele ri de mim! E eu ainda tenho que deixar barato? Não mesmo!
Por isso mesmo que na primeira oportunidade eu dei logo um belo beliscão naquele amarelo. E a dona Filó gritou:
“Gioconda sua peste!!!” Odeio quando ela me chama assim. Não de peste, já sou acostumada. Mais de Gioconda.
Tenho certeza que minha mãe não ia ser malvada assim de me dar um nome desses. Por isso se alguém perguntar, meu nome é...
- Gil!!!- Ouço uma voz familiar, me viro imediatamente,
- Ana!!!- Queria poder voltar e falar com ela mas dona Filó me puxa pela orelha, me advertindo que tenho que terminar de escolher os tomates. E a Ana está com a mãe, e elas seguem andando.
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Hoje vai ser um longo dia... A dona Filó provavelmente vai me confinar na cozinha engordurada e esperar que eu a faça brilhar como ouro.
E além do trabalhão ainda vou ter que ouvir ela reclamar de dores adversas e ouvir ela tossir como o cachorro da padaria. Talvez me ponha pra descascar batatas...
Hoje é dia de purê... Tomara que ela me dê a raspa da panela...
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(...)
– Ai!- Odeio esse papagaio. Ele só serve pra puxar o meu cabelo e pra fazer coco pra eu limpar. Não sei porque ele tem que vir e além de tudo porque ele não fica no carrinho ou no cangote da velha...
Queria que ela fizesse ele frito... Já que é tão seco não dá nem ensopado...
- Eu já falei, não falei? Prende essa juba moleca!!! – Nãoooo!!!....Não respondo por que não quero levar outro croque. Mais eu odeio prender o cabelo. E esse papagaio bobão não vai me obrigar...
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As pedras da rua não me ajudam com esse carrinho de feira pesado... Sei que não sou a única criança daqui que dá duro mais acho que sou a única criança que não brinca por mais de meia hora seguida por dia...
A única boneca que eu tinha, que a dona Vilma costureira me deu, o Pepe deu pro cachorro tuberculoso da padaria mastigar. E ainda por cima jogou o que sobrou no fogão a lenha!
O tio dele devia saber que ele mais apronta do que vende picolé... Aqui é tão frio que ninguém compra, então... Eu acho que ele mesmo chupa todos e depois põe gelo no lugar. Vive tão sujo como mendigo...
Sei que não tenho as melhores roupas, mais por estar sempre ajudando a dona Filó na cozinha eu tenho que estar limpa sempre...
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Hoje a dona Filó queria me bater...
Mais que culpa eu tenho do Pepe ter entrado aqui e derrubado a bandeja de ovos? Então eu sai correndo, e ela com uma vassoura atrás. Ela não me alcançou, não demorou cinco minutos ela começou a ofegar e tossir. Entrei numa carroça de feno.
Tomara que esteja indo pra bem longe daqui. Só vou ter saudades da minha melhor e única amiga Ana e da Dani a boneca dela, claro.
E tem meus livros escondidos no sótão... E da senhorita Laura, minha professora...
A escola não é tão ruim... A dona Filó odeia ser obrigada a me deixar ir, mais pra mim, era maravilhoso. Não só por que eu não trabalhava a tarde (apesar da dona Filó me fazer deixar todo serviço feito antes de sair) mais porque eu adoro! Escutar as histórias, aprender a escrever...
O que aliás eu já sei muito bem, eu era o orgulho do seu Loló, que sempre me dava livros velhos e umas balas, que eu escondia no sótão.
Quem achar minha caixa além de livros vai descobrir também um formigueiro, eu aposto.
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(...)
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Acordei com o barulho da buzina de um carro que passou pela carroça... Estamos numa outra cidade... Não sei mais parece ser maior que a anterior... Eu decidi descer...
Andei mais de uma hora e achei outra carona: Um caminhão de móveis velhos, que aliás só descobri depois de me enfiar debaixo da lona.
Quando acordei de novo já era quase noite, decidi dormir de novo pra enganar minha fome...
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E assim, foi que me acharam, me levaram pra delegacia e depois pra um hospital.
Eu tenho pernas pra que? Pra correr o mais rápido possível, claro.
Tô andando faz horas, eu acho... Consegui um cachorro quente, um resto de pipoca... Todos foram abandonados nesse banco aqui, mais acho que não é bom eu ficar aqui por muito tempo, pois aquele senhor gordo pode voltar e me perguntar dos meus pais de novo. Ele pode achar estranho que eu esteja esperando por eles desde ontem...
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Não sei se é seguro ficar em volta desse hospital, que é bem chique e tal, mais aqui é mais seguro que pela cidade afora, não quero correr o risco de ser pega pela ronda de novo... E aqui eu não vou precisar bater nada, já que as enfermeiras sempre trazem lanches pra comer aqui fora...
Tomara que meu novo amigo, aquele lá da cidade, tenha conseguido um lugar bom
também... Ele é esperto, sabe bater sem ser percebido... Mais não tão esperto porque tinha casa, mãe e fugiu. Se eu tivesse não estaria aqui. Pior que a dona Filó não tem, aposto...
Mais agora vou te parar de escrever pra ir ali catar uma bela de uma sacola daquelas plásticas, bem resistentes, que uma enfermeira largou no banco do outro lado... Vai me servir pra guardar coisas... Ainda não sei o que... Mais pode ser que eu tenha oque guardar depois...
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