sábado, 10 de maio de 2014

Capítulo 59 - Cabelo Pintado






Le Eternel Amour

Tulipe Rouge










Oh, fique quieta por um instante, querida!

-Por..por favor! - me contorço- Mal posso respirar!

-Conte até dez! Você está muito agitada, é só isso! - Joana gesticula tanto que me faz lembrar de que um dia ela foi atriz. Uma grande atriz. E agora está aqui, me espetando com alfinetes.

-Eu não estou agitada! Estou...-puxo o tecido pela milésima vez- Sufocando!

-Rosa, Rosa! - Janete revira os olhos - Não seja tão dramática! Esta já é a terceira prova. O vestido precisa ficar pronto logo... - ela bate o pé pensativa- Noivas...

-Eu sei. Mas acho que está .. apertado.. demais...- arfo

A costureira oficial chega e ajusta. Não tem como negar, o vestido está perfeito.

-Nunca vi uma noiva mais linda em toda a minha experiência!- a costureira suspira. Aposto que diz isso para todas.

-Aposto que ela diz isso para todas as noivas! - Janete sussurra para Joana, e eu rio discretamente.

-Então, não há mais dúvidas! Está pronto!


Voltamos a pé, conversando como se realmente eu fosse uma noiva feliz e apaixonada. Eu estou mesmo muito apaixonada, meu noivo é perfeito. Mas não estou feliz. Eu tenho um grande problema. Tem um cheiro ácido no ar, e um gosto amargo em minha boca. 

-Adoro este café! Eles tem um cappuccino tão tão delicioso! - o rosto de Jane se contrai, e ela está extasiada com a primeira maravilha gastronômica do mundo, segundo os médicos, é claro.

Eu apenas suspiro. O cheiro no ar é vingança. O gosto na boca não é café, é medo, angústia, insegurança. Tudo misturado, e em concentrações barbáries.


-Acho que a Alice é muito grande para esse vestido, Jane querida. 

-É verdade. - Janete bufa- Eu me esqueço! Para mim, é como se ela ainda fosse uma pequerrucha!

Elas guardam as revistas e me olham, como se esperassem que eu dissesse algo.

-Oque foi?- pergunto surpresa pela atenção

-Nada. 

-Isso mesmo, Rosa! Nada. Você não disse nada desde que chegamos. Ou desde que saímos do ateliê...

-Espere, Janete! Talvez essa distração toda seja saudades!

-Saudades? Hum... Mas ela o viu antes de sair de casa...  

-Parem, vocês duas! - sorrio impaciente- Eu só estou cansada! Essa semana foi tão corrida!

-E você mal teve tempo de estar com seu amor! - Janete pisca os olhos e junta as mãos - Pobrezinha!

-Janete! - me levanto - Quer saber, vou tomar banho!

-Outra vez?  -Joana e Janete se entreolham. Eu reviro os olhos e entro no quarto

-Ei, Rosa! - Janete entra em seguida e fecha a porta.

-Oque foi agora? - pergunto aflita

-Você... está assim desde que chegou... - ela diz pausadamente, me olhando ainda encostada na porta fechada.

-Assim como?- sento na cama e ela se aproxima

-Rosa.. - ela se agacha a minha frente - Você se penteia o tempo inteiro, não deixa um único fio de cabelo fora do lugar... Toma banho de meia em meia hora... 

-Jane! Eu não estou ...

-Desenvolvendo um quadro de transtorno obsessivo compulsivo!

-Claro que não! - levanto

Claude entra no quarto mas quando percebe a presença de Janete dá um passo para trás e gesticula  uma desculpa.

-Nada disso, Claude! Fique! Eu já estava de saída! - diz Janete se levantando- Se precisar, vou estar lá em baixo, no restaurante! - ela me olha de esguelha e eu entendo o recado. Não acabou. 

Suspiro me sentando novamente. Claude vem e ocupa o lugar em que Janete estava, agachando-se a minha frente. Toma minha mão e beija meus dedos bem como a palma.

-Tudo bem, amour? - ele pisca e sorri. Meu coração se derrete

-Está sim! - sorrio de volta. Pena que lágrimas fujonas saltam pelo meu rosto e pingam nas mãos dele, estragando minha tentativa de disfarçar que eu não estou segurando a onda coisa nenhuma.

-Oh, Amour! - Ele me abraça forte- Oque  foi? Porque está chorando? Aconteceu algo?

-Amor! - repito o apelido que jamais sairá da minha mente. Sinto a pele formigar. Imploro com os olhos para que ele não me pergunte nada. Não seria capaz de responder, e nem poderia.

E ele, como sempre, me entende. Basta um olhar para o outro e sabemos o que o outro sente. É como se..

-Está lendo minha alma? - ele sorri. Tenho o encarado desde que abri os olhos, e ele a mim.

-Talvez você esteja lendo a minha. - beijo seu peito. Ele bagunça meus cabelos vagarosamente...

-Eu não sei. -suspira - Mas acho que está angustiada demais.. Nunca a vi desse jeito, Serafina.

-Não me chame assim... 

-Porque? - ele sorri. Eu levanto a cabeça e contraio o canto da boca. - Tudo bem... - me deito em seu peito -Mas gosto como soa... E você non quer me dizer oque a está preocupando...

- Eu não... posso... - rolo a cabeça no travesseiro e ele se sustenta num cotovelo para me olhar 

-Non pode?..

-Não consigo.. - fecho os olhos e ele os beija, segurando meus pulsos que tentaram instintivamente afastá-lo- Não tenho como... - minha voz sai num fiozinho - descre.. ver .. - soluço e ele me abraça e beija novamente. Se ele soubesse!

Ele vai me odiar! Talvez depois entenda, mas ainda sim.. Vai me odiar!










Claude



Saio pela cidade, andando sem saber bem para onde ir. Meus pensamentos voam ao longo dos últimos 10 ou 12 anos.. Nara, Carlo e o nascimento de Rachel... E.. A minha garotinha curiosa sempre balançando os pézinhos para frente e para trás, impaciente

-Papai! Hoje está muito quente! - ela sorvia um líquido laranja por um canudinho de plástico - Não entendo o porquê de eu estar usando meias!

-São meias de náilon, Rachel. Non son ton quentes, hã? - sorri de forma calma. Mas queria sair correndo, porque a garotinha com o cabelo impecavelmente arrumado me fuzilava com o olhar

-Eu odeio o balé.- cruza os braços

-Non odeia non, você odeia meia-calça.

-Eu odeio você! - ela me olha emburrada. 

Foi a primeira vez que ela disse que me odiava. Eu fiquei chocado, é claro. Mas não foi a última. 
E depois eu aprendi que crianças dizem essas coisas, mas elas nem sabem ao certo como funcionam. Quando ficam bravas ou entediadas dizem que odeiam, ou quando ficam felizes dizem que amam. 

Ando sorrindo sozinho, me lembrando de Rachel e o quanto ela me alegrava. De suas perguntas tão absurdas...

-Papai, porque se chama corredor se não se pode correr aqui?

-Papai, as sobrancelhas da moça do balcão são pintadas de preto ou o cabelo de amarelo? 

Ou suas filosofias e conselhos... Excêntricos

-Não fique triste, papai. Eu quebrei a jarra da vovó, é verdade. Mas pense, ela ficaria feliz de ver o quanto você a estimava, tinha suco de tuti-fruti dentro. Tuti-fruti é divino e azul como o céu!

-Se hoje é amanhã de ontem então amanhã é o ontem de depois de amanhã.

-Onde se compra doçura que não é igual  a  do açucareiro?

-Quando eu for grande, vou querer um sapato vermelho como aquele.

-E porquê, Rach?

-Porquê você gostou deles. A moça que estava com os sapatos vermelhos fez você sorrir.

A moça de sapatos vermelhos era Rosa, que me dava tchau pela janela do táxi. A moça de sapatos vermelhos que levava meu coração por onde fosse. 

Rachel era tão pequena naquela época. Mas Rosa ainda tem aqueles sapatos. Joana os guardou numa caixa no antigo closet do apartamento da família.

-Porque ela não quis ficar no apartamento dela?

-Non tenho certeza.. Mas ela disse que non quer ficar sozinha lá.. Non sei porque. -sacudo a cabeça, confuso.


-Acho que é... pela.. Rachel e as coisas dela que ainda estão lá...

-Ela sonhava em viver os quatro aqui em Pari...

-Amanhã vamos passear de barco pelo Sena! É meu aniversário! - Janete sacode um panfleto que identifico como um charmoso convite manuscrito

-E.. Quantos convidados?

-Vinte . 

-Ham, ham! - Sergio pigarreia e ela revira os olhos

-Tá trinta... E cinco, no máximo. Não me julguem! Eu só estou tentando animar a Rosa! Juntar uns amigos, dançar..

-Isso tudo num barco?

-Sim. E não, ele não vai virar, sogra querida. - Janete sorri forçadamente para Joana que passava pelo balcão  e volta a me encarar- Vocês vão, não é?

-Oh, sim, claro. - meneio a cabeça- Mas.. Você tem certeza de que issi vai animar Rosa? Ela non gosta tanto de festas..

-É, eu sei. Por isso vai ser num barco e SÓ com quarenta...

-Quarenta?

-Trinta, tudo bem! - ela amaça um punhadinho de convites

-E.. Quem vai estar lá?

-Ah, não se preocupe, apenas conhecidos e próximos. - ela sorri. e eu finjo que sorrio, e que compreendo. Mas não estou feliz com essa ideia. Afinal, conhecidos deles e próximos deles. Eu nunca fui bom com pessoas, especialmente pessoas estranhas e que possivelmente roubarão a atenção de Rosa por uma tarde e metade de noite inteira. Oque eu farei? Onde colocar as mãos?



Rosa



Caminho a pequenos passos, porém depressa o suficiente para quase tropeçar. Me recomponho e suspiro. Levanto a cabeça e empurro a porta de vidro. Uma moça sorridente me aponta uma cadeira, na qual permaneço por meia hora aproximadamente.

-Senhorita Petroni? 

-Oui? - acordo de meus devaneios que pareciam infinitos

-O doutor está a sua espera. Venha, me acompanhe por favor. - o sotaque quebecano dela era gritante. Me levantei num suspiro e fui levada até uma sala que cheirava à verniz e celulose. Bem coisa de advogado mesmo.


-Sente-se, senhorita. - a voz atrás da cadeira giratória era grave e firme- Ora, vejamos.. -a cadeira virou e pude ver duas mãos pálidas, com relógio e aliaça de ouro, segurarem uma pasta verde- Hum... sim.

-Gos..

-Ora!- ele põe a pasta na mesa e então vejo um velhinho um tanto asqueroso. Rechonchudo, grisalho e com espessos bigodes escuros- Mas para que tanta atuação. Aqui já não é preciso! - penso em responder mas logo entendo que ele falava consigo mesmo- Você, senhorita Petroni, está mesmo em maus lençóis..

-O senhor...

-Sou representante do senhor Carlo Biancci.. - ele põe a mão ao lado da boca como quem conta um segredo e diz após um suspiro-  Geraldy..

-Ah..

-Naturalmente, a senhorita já sabe sobre os interesses de meu cliente em seu.. casamento.. - ele ajeita os óculos e o bigode, ao mesmo tempo.

-Eu..

-O negócio é bem simples, minha cara. Ele deseja que você se case e que em seguida, abandone o senhor.. Claude Antoine Geraldy, meio irmão de meu cliente e noivo, da senhorita, pelo que soube - ele ajeita os óculos olhando para meu anel

-Como..

-Não como, mas porquê! Porquê eu sei coisas sobre a senhorita? Essa é muito fácil! São apenas fatos, verdades que circulam por aí. E como sabe, é muito simples: só é verdade se não for mentira!

-Não! - Levanto o dedo indicador- me-interrompa!- arqueio as sobrancelhas e me ajeito no assento novamente- Por favor senhor.. doutor!- me corrijo antes que ele o faça- Me deixe falar!

-Oh, sim. Prossiga. - ele faz um gesto com a mão e volta a olhar os papéis da pasta verde

-Eu recebi uma.. intimação sua? intimação! como pode?

-Convite, senhorita! O mais adequado no caso, é convite.

-Aqui diz que se eu não comparecesse coisas terríveis aconteceriam!- coloco o papel sobre a mesa indignada

-Não seja tão dramática. Foi apenas uma maneira de.. sugerir urgência.

-Oquê? Como se atreve?

-Veja bem, madmoseile, eu só acato ordens. Estou até o pescoço com essa gente! - ele afrouxa o colarinho

-Com... com a máfia?

-Não diga bobagens! - ele arregala os olhos-  a associação dos cavalheiros negros é muito digna.

-Digna de cadeia, não é mesmo?

-Veja lá como fala, senhorita Petroni! - ele sacode o indicador rechonchudo no ar- Se eu fosse a senhora...

-Oquê? Se você fosse eu, oque? -desafio. Este salafrário só age assim por que sou mulher! Queria ver ele abaixar a cabeça se fosse o Claude... que frio na barriga só em lembrar..

- Se eu fosse a senhorita, tratava de acatar com todas as "sugestões" de  meu cliente!

Sinto o sangue fugir do rosto, mãos, pés...

-Case-se com o Geraldy. E depois, suma do mapa! Terá 24 horas após o casamento para sair da França!

-Oque?

-Porque o espanto? Meu cliente já havia lhe alertado sobre isso. E a senhorita está aqui para que me diga onde quer ir. O seu passaporte falso já está prontinho, veja só! - ele me lança a pasta com vários documentos falsos - Uma beleza!

-Como assim. passaporte falso?- gaguejo

-Não entendo o porque a surpresa. Evidentemente precisará de documentos falsos, do contrário seria facilmente encontrada. Ou se esquece que seu noivo é de alto escalão na Força Aérea?

-Eu..

-Escolha! - um catálogo de viagens é jogado a minha frente- eu sugiro algo como... o Thaiti... Ou a Indonésia... Ah, a Indonésia! Que praias! - ele se abana

- Eu já sei para onde vou... 


-Para onde? 


-Lisboa.- entrego o catálogo sentindo algo borbulhar meu estômago.

-Hum.. Boa escolha. Mas seria melhor algo fora da europa...

-Isso não estava no acordo! E além do mais.. Não tem a mínima possibilidade de o Claude pensar em me procurar por lá.. estaremos em Veneza e..

-Tá tá, já entendi. Mandarei tudo daqui uma semana para seu escritório, porque sei que lá na sua revista ninguém abre a correspondência com endereçamento pessoal...

Saio sem me despedir da moça de cabelo pintado da recepção. Sei que é pintado porque o cabelo é escuro mas os pelos da sobrancelha são claros, e os cílios também.












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